Do Assalto ao Golpe: A Nova Face dos Crimes Patrimoniais no Brasil
Nos últimos cinco anos, o Brasil tem vivenciado uma transformação silenciosa, porém profunda, na configuração dos crimes patrimoniais — aqueles que afetam diretamente o patrimônio das pessoas, como furtos, roubos, estelionatos e fraudes. Trata-se de uma das categorias mais comuns de ocorrência criminal, com forte impacto na sensação de segurança da sociedade.
Os tradicionais roubos de rua, que já dominaram as estatísticas policiais, vêm dando lugar a crimes menos visíveis, mas muito mais frequentes e sofisticados: o estelionato e as fraudes eletrônicas.
Essa mudança começou a ser percebida com mais clareza a partir do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, que analisou os dados de 2021. Desde então, os relatórios anuais vêm confirmando uma tendência cada vez mais consolidada: o crime patrimonial migrou das ruas para o ambiente digital.
A Queda dos Roubos e a Explosão dos Estelionatos
Desde 2018, o número de roubos registrados no país apresenta queda consistente. Em 2024, as polícias civis registraram 745 mil roubos, uma redução de 15,2% em relação ao ano anterior. Em paralelo, os crimes de estelionato dispararam: foram 2,16 milhões de registros em 2024, com crescimento de 7,8% no ano e 17% quando se trata de estelionato por meios eletrônicos.
A diferença é brutal: estamos falando de quase 208 casos de estelionato por hora, enquanto os crimes de rua se tornam menos frequentes. Isso não significa que o crime desapareceu, mas que mudou de forma, espaço e estratégia.
O Papel da Pandemia e da Transformação Digital
Esse novo cenário não surgiu do nada. Ele é resultado de um conjunto de fatores que convergiram nos últimos anos:
- A pandemia da Covid-19, que esvaziou as ruas e colocou milhões de brasileiros em home office;
- A digitalização das finanças, com o lançamento do PIX e o avanço das transações por mobile banking;
- A popularização dos smartphones — o Brasil já tem mais de 258 milhões de celulares ativos, média de 1,2 por habitante;
- A adoção massiva de redes sociais e aplicativos de mensagens, terreno fértil para golpes e fraudes de engenharia social.
O crime seguiu o dinheiro, e o dinheiro, hoje, circula no ambiente digital.
Celular Roubado: A Porta de Entrada para Golpes
Entre 2018 e 2021, mais de 3,7 milhões de celulares foram furtados ou roubados no Brasil, uma média de 2,5 aparelhos por minuto.
O celular passou a ser muito mais do que um bem material: ele guarda dados bancários, senhas, conversas, acessos a contas, sistemas de autenticação e PIX. Um aparelho desbloqueado, nas mãos erradas, pode gerar:
- Transferências fraudulentas;
- Empréstimos em nome da vítima;
- Golpes via WhatsApp, com engenharia social sobre contatos próximos.
E não para por aí: parte desses aparelhos é desmontada e vendida localmente, enquanto outra parte é enviada para o exterior, especialmente países africanos, onde o bloqueio das operadoras brasileiras não tem efeito.
O Desafio para a Segurança Pública
O crescimento de quase 300% nos estelionatos entre 2018 e 2024 desafia qualquer estrutura. Apenas 2,4% dos casos registrados chegam ao Judiciário. A estrutura policial e judiciária, formada para combater crimes presenciais e físicos, ainda engatinha para acompanhar a lógica da criminalidade digital, que exige tecnologia, integração e capacitação técnica.
Por trás da tela de um celular ou computador, o criminoso se protege de confrontos com a polícia. Atua de forma automatizada, com robôs e bases de dados vazadas, aplicando golpes em milhares de vítimas por dia — algo impensável no velho modelo do “assalto à mão armada”.
Boas Práticas e Sinais de Esperança
Felizmente, alguns estados vêm apresentando soluções inovadoras:
- O programa Celular Seguro, do Ministério da Justiça, permite bloquear celulares e notificar bancos em caso de roubo;
- O projeto “Recuperação de Celulares”, criado pela Polícia Civil do Piauí, utiliza análise de dados, integração com o Judiciário e ordem judicial para localizar milhares de aparelhos furtados, com uma redução de 29,7% nos crimes no estado.
Em estados como Santa Catarina e Acre, o número de celulares recuperados cresce acima da média, mostrando que políticas públicas bem desenhadas e foco em inteligência podem fazer a diferença.
Um Novo Ciclo de Crime Requer uma Nova Estratégia
A criminalidade se transformou. Os criminosos também. O Brasil precisa, agora, transformar sua resposta. É preciso ir além do policiamento ostensivo e adotar uma visão mais ampla, tecnológica e integrada. Isso inclui:
- Investimento em soluções digitais de investigação e inteligência;
- Capacitação profissional em cibersegurança e crimes eletrônicos;
- Cooperação entre polícias, bancos, operadoras, Judiciário e setor privado;
- E, sobretudo, foco em prevenção, recuperação do patrimônio e proteção da vítima.
O espaço físico limita a ação criminosa. O ambiente digital, não. Se o crime mudou, a segurança pública também precisa mudar.
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